terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Gênio que amava decor



Exposição de Matisse na Pinacoteca mostra o fascínio do artista por tecidos, objetos e acima de tudo, cor.


"Atribuir um sentido pejorativo a decoração implica em grave erro de julgamento. É preciso ser, antes de tudo, decorativo. A substância não basta. É preciso também um envoltório".

São, sim, de Henri Matisse as frases acima. Pasmem os preconceituosos que insistem em dizer que artes plásticas e decorativas nada têm a ver entre si, ou que os traços decorativos encontrados na obra do pintor francês denunciariam um artista menor.
Sem dúvida um dos grandes da pintura europeia da primeira metade do século 20, Matisse tinha um olhar especialmente sensível ao entorno. E, como todo apaixonado pelas artes decorativas, gostava de chiner, ou seja, sair por aí à cata de belos tecidos, objetos e ao que agradasse ao olhar. O pintor, que sempre cuidou de bem compor os interiores de seus quadros – em que a luz e as cores eram determinantes da atmosfera e do traçado – jamais temeu entrar nessa seara.
É justamente esse lado decô de Henri Matisse que descubro ao visitar a exposição Matisse Aujourd’hui, na Pinacoteca. Ali, desde 5 de setembro e até amanhã – portanto quem não foi que vá correndo –, estão reunidos quadros e gravuras de todos os períodos do consagrado pintor, assim como trabalhos de um grupo de jovens artistas franceses que dialogam com a sua obra. Uma experiência inspiradora que pode ser vivida pelos apaixonados do decô como uma lição também de equilíbrio entre volumes e cores no espaço interno de uma casa.

"A integração da figura dentro do espaço permite a Matisse criar decorações de ambientes que são verdadeiros quadros dentro do quadro. E como o olhar da modelo ali retratada se dirige ao espectador, uma perspectiva arquitetônica acaba surgindo naturalmente", declara a curadora Emilie Ovaere no belo catálogo que acompanha a exposição.
Na mostra, fica logo evidente o encanto e o fascínio do pintor pela tecelagem. Por tecidos coloridos e estampados com os quais forrava as paredes de seu ateliê e que são uma constante em seus quadros. Nascido em Le Cateau-Cambrésis, cidade conhecida pela produção de tecidos de luxo, não espanta o seu gosto pela tecelagem. E a uma coleção que cedo iniciou, ele foi ao longo dos anos agregando tecidos marroquinos, africanos, indianos, papas polinésias e pareôs tifaifai.

AS ODALISCAS
Interessante para qualquer profissional do design é observar a série Odaliscas em seus interiores, pinturas do período em que viveu em Nice, no sul da França, e das viagens ao Marrocos. Uma foto de Matisse pintando o seu famoso Odalisca com calça vermelha mostra os interiores do seu ateliê, tal como no quadro, com as paredes forradas com tecido estampado. Na tela, o tapete vermelho é do mesmo tom das calças da odalisca, e o azul do cinto é a cor dominante da estampa na parede atrás do divã onde a deitou.

Já no quadro Interior em Nice, a cor parece entrar pelas persianas italianas. O tom do carpete estampado, o da parede ao fundo e o do móvel se juntam em uma mesma cor, em ambiente onde a claridade de fora e a penumbra de dentro sugerem a temperatura ideal ao descanso da odalisca.

Um retrato nada convencional, mas que é revelador da preocupação de Matisse com o interior do retratado, é o da baronesa Gourgaud, mulher de um amigo. Como considerava desagradável pintar retratos de pessoas conhecidas, fez algumas exigências, como a de que sua modelo estivesse também no quadro. O resultado é uma bela composição, onde o espelho traz profundidade ao ambiente, reflete as costas do vestido estampado da baronesa e a toalha sobre a mesa lembra um desses tecidos do Usbequistão, os hoje tão fashion e sofisticados Suzani. Nesse quadro, surpreende mais que tudo – outra pequena prova do amor de Matisse pela decoração – a presença de um livro intitulado Art et Decoration.
Não deixa de ser incrível descobrir no quadro Moça com peliça branca que, para recostar sua modelo, Matisse escolheu uma chaise longue Le Corbusier forrada de pele de zebra. Nas paredes, os tecidos estampados. E no todo, como diz a expert em Matisse, Isabelle Monod-Fontaine, "um espaço totalmente reinventado pela cor". Em Natureza morta com aparador verde, obra de 1928, os tons de azul e de verde-piscina lado a lado, o tecido quadriculado e a jarra branca e azul nos remetem aos interiores de igrejas portuguesas onde essa mistura de cores é uma constante.

OBSESSÃO POR CÉZANNE
Matisse não escondia sua necessidade de viver onde a luz fosse abundante. Muito ressentiu o período em que viveu no norte da França, o que o levou a pintar com cores cinzentas e sombrias. Sabe-se que o pintor foi sempre um obcecado por Cézanne. Admirava nele a simplicidade e a escolha de motivos totalmente destituídos de exotismo. Era como se assimilar a obra do mestre fosse um imperativo antes que pudesse dar o seu próprio salto. Dizia que " depois de Cézanne, a cor ainda está por ser inventada". Foi só depois disso que deixou que a cor explodisse em suas pinturas.

Nos anos 40, Matisse propalava claramente o seu comprometimento com a cor. A um amigo escreveu que os desenhos não lhe interessavam mais e, com apenas o recurso da cor, ele iria daí por diante delimitar os espaços de seus quadros.

Era cioso do seu próprio interior, casa, ateliê e laboratório de ideias. Em 1946, recortou uma andorinha em folha de papel de carta que colou na parede para esconder uma mancha. Foi o começo de uma série de recortes que foram aos poucos ocupando toda a superfície. A brincadeira acabou se transformando nos painéis Oceanie, hoje no acervo o Museu Matisse de Le Cateau-Cambrésis. Foi como abordou a questão do espaço vibrante e a ideia de dar vida a um traço e a uma linha. E depois, quando na França as velhas manufaturas de tapeçarias se preocuparam em dar um novo rumo à essa arte tão tradicional, Matisse não hesitou. Levando em conta a problemática da parede, de modo a que o resultado não parecesse a cópia de um quadro, fez cartões para tapeçarias com seus recortes de pássaros, algas brancas e peixes.

VITRAIS E PAINÉISNesse mesmo ano, Matisse resolveu, como anunciou ao galerista Paul Rosenberg, deixar de lado a pintura para entregar-se apenas a trabalhos decorativos. Ele fez os murais da série A dança de Barnes, os cartões para as tapeçarias Polinésia, e maquetes para painéis estampados sobre linho. Dedicou-se também a fazer vitrais e painéis de cerâmica para a casa de amigos.

O que Matisse considerou como sendo a sua obra prima é a capela de Vence, um projeto de arquitetura. A ela dedicou os últimos anos de sua vida. Idealizou não só o exterior como todos os detalhes da decoração – vitrais, cerâmicas murais, capelas, batistérios e até os objetos de culto e sacerdotais. Já doente, projetava nas paredes de seu quarto com um lápis atado a um vareta.

Expressão e decoração seriam para ele uma mesma unidade. O segundo termo estaria condensado no primeiro: "Um artista tem de olhar para a vida sem preconceitos". É a lição que nos deixou. (http://www.mariaignezbarbosa.com/).

FOTOS: 1. As cores de céu e de piscina no quadro 'Natureza morta com aparador verde'; a jarra lembra a nossa cerâmica São Simão. 2. 'Interior em Nice', de 1922, em que Matisse expõe sua paixão pela estampa, que cobre o chão, as paredes e a poltrona. 3. No retrato da baronesa Gourgaud, de 1924, a toalha sobre a mesa poderia ser um Suzani ou um xale espanhol. Destaque para a presença do livro 'Art et Decoration'.

Jornal Estadão, 31/10/2009
Texto de Maria Ignez Barbosa
Produção de Maria Regina Notolini
Fotos da Pinacoteca do Estado e da Succession H. Matisse



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